terça-feira, 20 de maio de 2014

Os Sinos


Num cemitério, em qualquer cemitério, as palavras do poeta John Donne perseguem-me, repetem-se no meu espírito: “Nenhum homem é uma ilha isolada, cada homem é uma partícula do continente, uma parte do todo; se um torrão é arrastado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Ernest Hemingway usou-as em 1940, quando editou o brilhante “Por Quem os Sinos Dobram”, mas elas, as palavras, não se dobram perante o cortejo de campas, sepulcros, lajes e lápides do Cemitério Oriental da Figueira da Foz. Quando leio, numa lápide de um defunto que não conheço, a emocionada inscrição: “Eterna saudade dos seus filhos”, nem reparo que a campa se encontra totalmente abandonada... Que importância tem vislumbrar uma sepultura abandonada? Regressam de imediato as palavras de John Donne: “Nenhum homem é uma ilha isolada, cada homem é uma partícula do continente, uma parte do todo...”.

Mas, pesarosamente, o todo assemelha-se a um “torrão arrastado pelo mar”... A existência segue sem propósito nem sentido, e o discurso público e político atingiu a inanidade total. Como construir um discurso sobre o país e a Europa se somos diariamente bombardeados por sound bites, demagogia e mentiras? Todos nos escondem a cruel realidade do definhamento da Europa, sem riqueza suficiente para manter o estado providência do pós-guerra; no fundo, acabou o que distinguia a Europa como farol de liberdade, igualdade, direitos humanos e estado de bem estar; pior, explicam-nos a realidade através de uma ficção onde a esquerda e a direita subsistem, o muro de Berlim permanece de pé e o século XX ainda vai a meio...

A Europa tem que reinventar-se e deitar abaixo um sistema baseado no consumismo desenfreado, que leva os bancos a acumularem um poder desmesurado e anti-democrático. Ninguém sabe como realizar esta revolução, nem há um lider ou tropas disponíveis para avançar; importava, pelo menos, que os europeus conhecessem a verdade e que percebessem que “se um torrão é arrastado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria”.

A culpa do que aconteceu ao velho continente e a Portugal não está só nos outros, no papão dos bancos, Troika, FMI, Comissão Europeia, José Sócrates ou Passos Coelho; a realidade apresenta-se mediocre, incompetente e corrupta porque todos nós somos “uma parte do todo”, “cada homem é uma partícula do continente”.

“E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”!

segunda-feira, 24 de março de 2014

O Fim

Na conferência de imprensa que antecedeu o jogo entre o Estoril e o Benfica, Jorge Jesus pronunciou as seguintes palavras: “Se eu começar a pensar no que me pode acontecer um dia, eu sei que vou morrer um dia. Começo a pensar que vou morrer um dia e todos os dias ando infeliz. Eu quero ser feliz por aquilo que é o Benfica hoje”.

Curiosamente, a tirada de Jesus, um purista da palavra, surge num momento em que no meu espírito se adensa uma dúvida: será que Portugal se finou?

Recorde-se que, rapidamente, Portugal passou de Condado a reino independente, pátria a nação gloriosa; o povo eleito por Deus para espalhar a palavra do Senhor através da epopeia dos Descobrimentos. Refira-se que este irrealismo, a imagem exaltada que temos de nós próprios, é uma constante na historiografia e literatura nacional: para além dos Lusíadas, temos o sapateiro Bandarra e as suas profecias de um reino universal liderado pelo embuçado; o milenarismo do Padre António Vieira com Portugal senhor de um Quinto Império; o genial propagandista do sebastianismo D. João de Castro (1550-1628) ou o místico Fernando Pessoa da Mensagem...

Reparem: todo este nacionalismo sebástico ressurgiu periódicamente ao longo da história; quando os ingleses, em 1890, aprovaram o Ultimatum e Portugal teve que abandonar parte do seu “império” africano, ocorreu um tumulto nacional, com Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Eça de Queiroz ou Fialho de Almeida, a acusarem o governo e a monarquia de cobardia e de permitirem a humilhação nacional; na altura, Silva Porto, um comerciante e explorador do interior africano, imolou-se envolto numa bandeira portuguesa...

A jacobina primeira república apresentou-se como uma simbiose entre valores patrióticos e populares, basta atentar na A Portuguesa; a república autoritária de Salazar, essa, resumia-se ao “tudo pela nação, nada contra a nação”; veio o 25 de Abril e o fim do império que restava, e o que tivemos?      

Para além do saudosismo da glória perdida, vimos no projecto da Comunidade Europeia a hipótese de reconstituir um novo império; recordam-se do Primeiro-Ministro Cavaco Silva, nos anos 90, a garantir que Portugal seguia no “pelotão da frente” da Europa?

Julgo que a crise económica de 2008 colocou a nu o fim da narrativa sebástica: Portugal não é mais um povo destinado à glória, antes uma pequena nação, pobre, endividada, falida. Pior: o nosso Primeiro-Ministro chama-se Angela Merkel...

Mas será que temos a consciência que a pátria se finou?!

Não sei, talvez os portugueses continuem a identificar-se com Jorge Jesus: “Eu quero ser feliz por aquilo que é o Benfica hoje”.

     

 

segunda-feira, 3 de março de 2014

A Borboleta


Qual é a vossa opinião sobre o início de tudo?

 Se o governo de Marcelo Caetano não tivesse publicado a lei 353/73 - que equiparou os oficiais milicianos aos do quadro permanente, gerando grande contestação entre os oficiais de carreira -, o movimento dos capitães e, posteriormente, o MFA, teriam avançado para a revolução de Abril?!

E a ida de Passos Coelho ao programa de Manuel Luís Goucha e Teresa Guilherme, “Olha que Dois” (1993), onde Goucha prevê que Passos será Primeiro-Ministro; será que esta premonição inspirou o grande líder a avançar para o cargo de comandante da nação?!

E se John Lennon não tivesse criado uma banda no liceu chamada The Black Jacks e, posteriormente: The Quarrymen, Johnny and The Moondogs, Long John and The Beatles, The Beetles e, por fim, os aclamados The Beatles, acham que os Beatles portugueses, os Sheiks de Paulo de Carvalho e Fernando Tordo, teriam aparecido em 1963?! E Tordo, 51 anos depois, teria rumado como um desgraçado para o Brasil?

A teoria do caos e o efeito borboleta permitem exercícios  absurdos como estes; o que estas leis defendem resume-se a isto: pequeníssimas alterações no início de um determinado evento podem originar consequências imprevisíveis e inimagináveis no futuro. Daí a célebre interrogação de Lorenz, o criador do efeito borboleta: “o bater de asa de uma borboleta no Brasil pode originar um tornado no Texas?”.

Como a teoria do caos pode aplicar-se às ciências humanas, coloquei-me a seguinte questão: qual foi o desvio inicial da terceira república?! A quem podemos assacar culpas?

Aos militares revoltosos, não; fizeram a revolução e devolveram o poder ao povo. Os portugueses, esses, passaram a bola aos políticos, que governaram de forma clientelar e despesista para agradar ao povo...

Eduardo Lourenço, o nosso maior pensador, pensa que não há qualquer desvio; no genial “O Labirinto da Saudade”, Lourenço afirma que “somos um povo de pobres com mentalidade de ricos. Se tivesse acrescentado qualquer coisa como “ricos pobres”, ou ricos imaginários, teria resumido oitocentos anos de história pátria e dado uma última demão no diagnóstico célebre da nossa “intrínseca loucura” lavrado por Oliveira Martins”.

E Lourenço discrimina essa “loucura”: Portugal é um país onde “não trabalhar foi sempre sinal de nobreza”, onde refinamos essa herança ancestral transferindo para o preto essa penosa obrigação. É mesmo essa a autêntica essência dos Descobrimentos, o resto, embora imenso, são adjacências”.

E acrescenta: o país vive à cata da graça, do milagre, e vive para o “aparato e aparência”; “Há dois anos que se desenha e avoluma a já agora dramatizada “crise” em que famílias inteiras, das que é costume chamar modestas, gastam num almoço, calmamente, o décimo do que um dos seus membros pode ganhar por mês”.   

“Mas é escusado pensar que a metamorfose da maravilhosa revolução dos cravos em degradado banquete dos “cravas”, para o etiquetar com a vulgaridade que merece, se deva nominal e grupalmente a alguém. É uma culpa anónima, uma maquinação de poderes obscuros, uma “pouca sorte” que nada tem a ver com a mentalidade colectiva tantas e tantas vezes ilustrada. Culpados não existem...”.

 Em suma: Portugal nada tem a ver com a teoria do caos; nesta pátria, uma asa de borboleta não provoca um tornado no Texas...


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A Vontade


Arthur Schopenhauer garantia que o mundo não passava disto: vontade e representação...

Leio os periódicos locais, e constato que João Ataíde teve vontade de contratar o cançonetista Emanuel para este carnaval; pelos vistos, o pimba representa na perfeição o carnaval da Figueira...

 O que não espanta: Schopenhauer garantia que não era a razão que comandava o mundo, antes, os caprichos da vontade; talvez seja por isso, cogitamos, que a Câmara da Figueira continua a organizar uma festarola que dá 50 mil euros de prejuízo e não é um foco de atracção turística.

Pior: João Ataíde luta pela vinda do turismo de qualidade para a cidade, enunciando, até, o sonho de os navios de cruzeiro atracarem no porto da Figueira, e depois contrata o pimba Emanuel para o grande carnaval... “O perfeito homem do mundo seria aquele que jamais hesitasse por indecisão e nunca agisse por precipitação”, escreveu Schopenhauer na obra Aforismos para a Sabedoria de Vida.

No campo oposto, temos Emmanuel Kant, que via o mundo somente dirigido pela razão pura.
No entanto, o filósofo admitia a existência da razão prática, ligada à intuição e ao sentimento; pois há uma realidade absoluta em todas as consciências deste mundo: a noção moral, a nossa obrigação ética. Kant chamava-lhe o imperativo categórico: a distinção definida do que está certo e errado.

Há uns meses atrás, o Hospital da Figueira solicitou à Câmara Municipal apoio para disciplinar o trânsito no parque de estacionamento do hospital; pelos vistos, na época balnear, o parque é utilizado abusivamente pelos veraneantes e os doentes não têm lugar para estacionar as viaturas.

A autarquia, imbuída do imperativo categórico, “emprestou” 80 mil euros ao Hospital da Figueira para que este instalasse um sistema de estacionamento pago. Repito: uma Câmara, que “faliu” há meia dúzia de anos, emprestou 80 mil euros ao governo central!   

Realmente, o imperativo categórico dá cabo da razão pura; resta-nos a vontade e a representação deste mundo pimba...

 

 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O Clic


É muito simples: pega-se no rato e clic... Leio uma frase linda, tipo: “o que machuca não é o amor, são as pessoas. O amor é só um sentimento”, e clic; um gatinho amoroso, clic; a nova foto de perfil de uma tipa que conheci no Verão de 1990, mas que agora é muito minha amiga no facebook, e clic; gosto!

Basta um simples dedinho para avançar com um gosto, e triliões de dedinhos clicam sem piedade por esse mundo fora; clicam, claro, no banal, no corriqueiro, no vazio; nada mais terapêutico...

O mundo da internet é tão vazio quanto a nossa existência; num duplo sentido: é, por um lado, o espelho da sociedade de massas oca e, por outro, o repositório de todos os desejos do homem, esse motor do mundo que disfarça a futilidade e vacuidade da existência humana.

Desejamos ser reconhecidos e, até, venerados, então publiquemos vídeos ou frases giras no facebook; não há nada mais esfuziante do que 50 ou 100 gostos num post da nossa autoria! E se não encontramos nenhuma frase ou vídeo mágico, avancemos para as fotografias de gatinhos, cãezinhos ou chimpanzés, resultam sempre...

Depois, temos o país com opinião política: pouca gente lê ou reflecte sobre a realidade do mundo, mas toda a gente tem um qualquer bitaite para dar; e a internet amplifica o fenómeno!

Recentemente, na Figueira, o Executivo autárquico decidiu não permitir a presença de público numa das reuniões de Câmara. Refira-se que, a lei, apenas impõe a presença de público numa das reuniões. Mais: as decisões tomadas nas reuniões sem público continuam a ser publicitadas na imprensa; a oposição está sempre presente; a Assembleia Municipal, o Tribunal de Contas, a Inspecção-Geral de Finanças, continuam a fiscalizar todas as decisões do Executivo; em todo o país, maiorias, da esquerda à direita, tomaram a mesma decisão, etc, etc.

E reparem no seguinte: a Câmara é um órgão executivo tal como o governo da república, cujas reuniões do Conselho de Ministros são todas privadas; ou seja, ninguém se lembraria de chamar de ditador a Passos Coelho só porque reúne em privado com os seus ministros!

Pois bem, na Figueira, a blogosfera acéfala chamou todos os nomes reais e imaginários a João Ataíde quando uma das reuniões foi encerrada ao público! Ditador foi a adjectivação mais simpática que lhe atribuíram...

A maioria da blogosfera figueirense não reflecte, não é séria nem tenta ser isenta... Pior: argumenta, frequentemente, recorrendo ao insulto pessoal; uma vergonha...

Recentemente, o vereador da cultura e vice-presidente da autarquia, António Tavares, passou a ser cronista do diário As beiras; os seus textos têm versado os temas candentes da actualidade: o desemprego, a educação, etc, etc, etc. Pois bem, imaginem como a blogosfera reles e rasca classificou os textos de António Tavares: são uma “merda”...

Reparem nisto: António Tavares é um homem das letras, com várias peças de teatro, ensaios e livros editados. Em 2013, concorreu com um romance inédito ao prémio literário Leya, o maior prémio literário da lusofonia, com um prémio monetário de 100 mil euros. Concorreram 491 romances, provindos de 14 países – esta foi a edição mais concorrida e internacional de todas, com romances oriundos da Alemanha, Angola, Brasil, Espanha, E.U.A, França, Guiné-Bissau, Itália, Luxemburgo, Macau, Moçambique, Portugal, Reino Unido e Suécia. O Júri do concurso inclui gente tão distinta como Manuel Alegre, Nuno Júdice, Pepetela, o Reitor do Politécnico e Universitário de Maputo, Lourenço do Rosário, ou uma professora universitária da Universidade de São Paulo, Rita Chaves, entre outros.

Pois bem, das 491 obras, este ilustre júri seleccionou 7 romances, entre eles, “As palavras que me hão-de guiar um dia”, de António Tavares...

 Palavras para quê?! Afinal, as “merdas” escritas por Tavares têm algum valor, pelo menos, para um júri internacional...

Mas não há nada a fazer: esta blogosfera rasca recorre à maledicência para sublimar as suas frustrações; vai continuar por aí, na maior impunidade, a insultar tudo e todos...

A internet é, de facto, o repositório de tudo o que é bom e mau na sociedade; é pena a Figueira não ter sido bafejada pela sorte...

 

domingo, 26 de janeiro de 2014

A Felicidade


A Figueira precisava de um “Happy Days – Promoting Positive Mental Health for Young People”, e a Escola Secundária Dr. Bernardino Machado fez-nos a vontade: promoveu um fórum para desenvolver o “espírito optimista” dos figueirenses e, aparentemente, o seminário resultou em cheio: não páram de afluir notícias banais e positivas aos periódicos locais!

O Instituto de Socorros a Náufragos da Figueira recebeu uma nova e imponente embarcação para o seu serviço – um semi-rígido com menos de 9 de comprimentos! – e a Marinha em peso esteve presente na inauguração do grande navio: Chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional, o Vice-Almirante; sem contar com o pároco, Presidente da Câmara, etc, etc. Foi um “happy day” esta inauguração...

 A Sociedade Filarmónica Quiaense vive um dos seus “melhores momentos” – garantem os responsáveis pela colectividade – mas ninguém quer dirigir a associação recreativa... O Caceirense, então, teve um 2013 em “grande”, com “muitos milhares de euros” investidos na colectividade, o que permitiu, inclusive, criar uma casa de banho para cidadãos com deficiência!

É claro que há pequenos sustos: um barco de perca artesanal meteu água em pleno Cabo Mondego, mas conseguiu regressar a bom porto – pelos vistos, a embarcação “Ilídio Fradoca” foi atacada pela “bactéria” da madeira e esta originou 2 grandes rombos no casco! E nem vos falo na grua consumida pelas chamas no cais comercial, com o sinistro a ser combatido “em altura” e com uma “emulsão de espuma orgânica”!  

Mas estas pequenas nuvens não contrariam o curso da história: o reino figueirense segue feliz...

Há uns meses atrás, antes das eleições autárquicas, a imprensa era inundada de discussões e querelas, propostas e manifestos, acusações e polémicas sem fim... O que resta desse tempo de desassossego?!

Onde estão as promessas catitas do PSD, como a diminuição do areal da praia, os 12 grandes eventos de animação, o festival de cinema ambiental, de arte contemporânea e de arte urbana, o estacionamento e a internet gratuita, etc, etc; pode um partido apresentar mil propostas milionárias em campanha e, depois, só porque perdeu as eleições, varrer para debaixo do tapete tudo o que prometeu aos figueirenses?! A oposição não deve apresentar as suas propostas em reunião de Câmara? E a maioria socialista, quando é que nos apresenta um qualquer projecto “happy”?!

Já sei como a maioria vai responder: o Executivo conseguiu para a Figueira uma estátua de Sri Chinmoy, única no país e a vigésima primeira em todo o mundo!

Antes de mais: quem é Sri Chinmoy?

Chinmoy Kumar Ghose, natural do Bangladesh, ficou órfão aos 12 anos e entrou numa comunidade espiritual indiana onde passou vinte anos a orar, meditar, compor poemas, canções espirituosas, ensaios, a praticar o atletismo, etc. No site de Sri Chinmoy, garante-se que o Sry teve “muitas experiências interiores profundas e nos anos seguintes alcançou estados muito elevados de meditação”. De tal maneira que, em 1964, Kumar Ghose mudou-se para Nova Iorque, terra propícia a elevados estados de meditação...

E pronto, Chinmoy nunca mais parou de meditar e de espalhar a mensagem da paz, amizade e harmonia, e, claro, não parou de correr, maratonas, ultramaratonas, corridas de fundo, menos fundo, e acabou por criar a Peace Run, que, de dois em dois anos, transporta a tocha da paz pelo mundo.

A tocha acabou por passar pela Figueira e, por artes mágicas, uma estátua do Sri assentou arraiais junto ao rio, em frente ao Forte de Santa Catarina. Já o viram por ali?! Faces orientais, ar bonacheirão, careca e com uns dois metros e meio de altura, Chinmoy ostenta uma tocha em forma de cruz (muito cristã) na mão...

Mas, pergunta toda a cidade: porque é que João Ataíde colocou uma estátua de um oriental bonacheirão numa praça pública?! O que é que tem de “happy” esta réplica em metal do Sri?!

Eu explico: Chinmoy lutou pela paz mundial mas, fundamentalmente, bateu-se pela meditação como meio de alcançarmos a felicidade plena... Curiosamente, Freud também defendeu a importância de nos abstraírmos da realidade miserável que nos circunda; o pai da psicanálise apresentou, até, os dois meios mais eficazes para enfrentarmos o sofrimento: as substâncias tóxicas e a loucura...

Infelizmente, concluiu Freud, as drogas e a loucura levariam a civilização ao declínio total; por isso, tentei seguir o método aparentemente inofensivo de Chinmoy: sentei-me, cerrei os olhos, relaxei, abstraí-me do mundo...

Senti-me zen pela primeira vez na minha vida, preparadíssimo para conhecer as últimas do mundo, mesmo as realidades mais atrozes; vejamos:

O governo garantiu que, em 2013, iria cortar 300 milhões de euros nas parcerias público-privadas. Acontece que, na verdade, cortou metade deste valor... Pelo menos, nos cortes dos ociosos funcionários públicos e desempregados não houve falhas ou equívocos...

Aguiar-Branco, Ministro da Defesa, encerrou os estaleiros navais de Viana do Castelo com a justificação que a Comunidade Europeia exigia à empresa a devolução de ajudas europeias no valor de 180 milhões de euros. Acontece que Joaquim Almunia, Comissário Europeu do sector, garantiu recentemente que a Comissão nunca exigiu essa verba...

João Portugal, o deputado que nada faz e nada diz na Assembleia da República, decidiu dar um ar da sua graça abstendo-se na questão do referendo à co-adopção... Joãozinho alinhou na golpada da direita mais tonta, radical e reaccionária!

E pronto: graças a João Ataíde e à meditação de Sri Chinmoy, as realidades mais dramáticas transformam-se em graças divinas! Milhares de turistas virão à Figueira na ânsia de encontrar esse reino espiritual sem deputado, partido ou governo mentiroso e incompetente!

Viva João Ataíde, viva Sri Chinmoy, viva a Figueira happy!

domingo, 5 de janeiro de 2014

A Alvéola


Aparentemente, o país cresce... Sobem as exportações e o emprego, descem as falências e insolvências; o Prof. Marcelo – um predestinado - garante que o chumbo do Tribunal Constitucional ao corte das pensões não vai enervar os mercados e que o Ronaldo vai vencer todas as Bolas de Ouro da humanidade...
Na Figueira da Foz, a administração do novo “hotel titanic” da Ponte Galante garante que o empreendimento criará 100 postos de trabalho?! Ataíde, entusiasmado, fala em “pólo de crescimento” turístico, em “navios de cruzeiro” na barra da Figueira e na “exploração turística de mercados internacionais”...

Nesta quadra, a cidade foi transformada numa “Cidade Natal”, com luzinhas, casinhas, musiquinha, “fun zone”, karts a pedal, insufláveis e uma exposição de 750 “pais natais” no meeting point - uma das “maiores do mundo!”, garantiu o responsável pela mostra.

A “Associação de Apoio à Crise” realizou uma parada de “pais natais” que juntou 12 camiões, o Tino de Rãs, o Grupo de Dança BWS com Carmencita ou as Next Generation... “Este foi um grande balão de ensaio para, num futuro, vermos a Figueira falada por todo o mundo com esta grande parada”, garantiu Quim Madeira, da organização...
Infelizmente, estas maravilhas surpreendem-me no momento em que tomo conhecimento de uma tragédia: o passarito que vivia no E. Leclerc desapareceu!

Recordam-se dele, do texto que escrevi há três anos atrás? Rezava assim: “Sabiam que no E.Leclerc vive um pardalito? É um pardal, igual a tantos outros, mas figueirense, desmesuradamente esperto, de tal maneira que se refugiou logo na zona dos congelados; como sabem, qualquer ave concelhia tem sempre de fugir do calor “inigualável” da praia da claridade. Adiante. O pardal voa no paraíso E.Leclerc sem freio, receio ou preocupação, a catita ave é livre, totalmente livre, não espera um “amanhã que cante”, nada, só deseja debicar sem cessar os produtos guia, aqueles com 50% de desconto em cartão; é claro que quem vai poupando assim é feliz, não almeja mais nada, nem sequer repara na moça da charcutaria, a do turno da noite: formas generosas, paio fresco a toda a hora, soldo miserável por 12 horas de jornada solitária; será que o passarito algum dia vai reparar na moça? E que a moça vai algum dia melhorar a sua existência, quiça, ser por breves momentos um pássaro livre, totalmente livre, sem precisar de um “amanhã que cante”?! Não faço ideia como acabará a história, o mais certo é o pardal debicar o paio nobre da moça e ser enxotado de vez...”.

Acontece que o pardalito – afinal, uma alvéola macho – foi enxotado três vezes do E.Leclerc, e três vezes regressou ao seu paraíso...
Até há meia dúzia de dias, o “chiquito” – os funcionários do hipermercado baptizaram-no assim – debicava sem cessar na frutaria, nos congelados, nos legumes, na charcutaria; resultado: o chiquito transformou-se numa bola de sebo e já nem conseguia voar...

Há um conjunto de lições que podemos retirar da vida deste passarito...
Chiquito, tal como os Homens, abdicou da liberdade em nome de uma existência plena, feliz e obesa...Os Homens, refere Freud, procuram a mesma felicidade mas a condição humana – a dor, o medo, as frustrações, a angústia, a ausência de sentido, a morte – impede-os de a alcançar...

O que é que nos resta?! Cuidar do nosso “jardim”, como referiu Voltaire no fim do brilhante Cândido; ou seja, entusiasmemo-nos por algo. Sejamos felizes nas casinhas da Cidade Natal, a ouvir o Tino de Rãs, o som dos motores do Quim Madeira ou a Carmencita com o grupo de dança BWS; vibremos com os 750 pais natais, os 100 postos de trabalho no “Titanic”, os navios de cruzeiro na barra da figueira ou o Prof. Marcelo a garantir todas as bolas de ouro da humanidade ao Ronaldo...
Transformemos a Figueira num imenso E. Leclerc: com o Chiquito no seu Jardim do Éden, antes do pecado original; alguém percebe, então, porque é que o raio do pássaro se escapuliu?!