domingo, 26 de janeiro de 2014

A Felicidade


A Figueira precisava de um “Happy Days – Promoting Positive Mental Health for Young People”, e a Escola Secundária Dr. Bernardino Machado fez-nos a vontade: promoveu um fórum para desenvolver o “espírito optimista” dos figueirenses e, aparentemente, o seminário resultou em cheio: não páram de afluir notícias banais e positivas aos periódicos locais!

O Instituto de Socorros a Náufragos da Figueira recebeu uma nova e imponente embarcação para o seu serviço – um semi-rígido com menos de 9 de comprimentos! – e a Marinha em peso esteve presente na inauguração do grande navio: Chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional, o Vice-Almirante; sem contar com o pároco, Presidente da Câmara, etc, etc. Foi um “happy day” esta inauguração...

 A Sociedade Filarmónica Quiaense vive um dos seus “melhores momentos” – garantem os responsáveis pela colectividade – mas ninguém quer dirigir a associação recreativa... O Caceirense, então, teve um 2013 em “grande”, com “muitos milhares de euros” investidos na colectividade, o que permitiu, inclusive, criar uma casa de banho para cidadãos com deficiência!

É claro que há pequenos sustos: um barco de perca artesanal meteu água em pleno Cabo Mondego, mas conseguiu regressar a bom porto – pelos vistos, a embarcação “Ilídio Fradoca” foi atacada pela “bactéria” da madeira e esta originou 2 grandes rombos no casco! E nem vos falo na grua consumida pelas chamas no cais comercial, com o sinistro a ser combatido “em altura” e com uma “emulsão de espuma orgânica”!  

Mas estas pequenas nuvens não contrariam o curso da história: o reino figueirense segue feliz...

Há uns meses atrás, antes das eleições autárquicas, a imprensa era inundada de discussões e querelas, propostas e manifestos, acusações e polémicas sem fim... O que resta desse tempo de desassossego?!

Onde estão as promessas catitas do PSD, como a diminuição do areal da praia, os 12 grandes eventos de animação, o festival de cinema ambiental, de arte contemporânea e de arte urbana, o estacionamento e a internet gratuita, etc, etc; pode um partido apresentar mil propostas milionárias em campanha e, depois, só porque perdeu as eleições, varrer para debaixo do tapete tudo o que prometeu aos figueirenses?! A oposição não deve apresentar as suas propostas em reunião de Câmara? E a maioria socialista, quando é que nos apresenta um qualquer projecto “happy”?!

Já sei como a maioria vai responder: o Executivo conseguiu para a Figueira uma estátua de Sri Chinmoy, única no país e a vigésima primeira em todo o mundo!

Antes de mais: quem é Sri Chinmoy?

Chinmoy Kumar Ghose, natural do Bangladesh, ficou órfão aos 12 anos e entrou numa comunidade espiritual indiana onde passou vinte anos a orar, meditar, compor poemas, canções espirituosas, ensaios, a praticar o atletismo, etc. No site de Sri Chinmoy, garante-se que o Sry teve “muitas experiências interiores profundas e nos anos seguintes alcançou estados muito elevados de meditação”. De tal maneira que, em 1964, Kumar Ghose mudou-se para Nova Iorque, terra propícia a elevados estados de meditação...

E pronto, Chinmoy nunca mais parou de meditar e de espalhar a mensagem da paz, amizade e harmonia, e, claro, não parou de correr, maratonas, ultramaratonas, corridas de fundo, menos fundo, e acabou por criar a Peace Run, que, de dois em dois anos, transporta a tocha da paz pelo mundo.

A tocha acabou por passar pela Figueira e, por artes mágicas, uma estátua do Sri assentou arraiais junto ao rio, em frente ao Forte de Santa Catarina. Já o viram por ali?! Faces orientais, ar bonacheirão, careca e com uns dois metros e meio de altura, Chinmoy ostenta uma tocha em forma de cruz (muito cristã) na mão...

Mas, pergunta toda a cidade: porque é que João Ataíde colocou uma estátua de um oriental bonacheirão numa praça pública?! O que é que tem de “happy” esta réplica em metal do Sri?!

Eu explico: Chinmoy lutou pela paz mundial mas, fundamentalmente, bateu-se pela meditação como meio de alcançarmos a felicidade plena... Curiosamente, Freud também defendeu a importância de nos abstraírmos da realidade miserável que nos circunda; o pai da psicanálise apresentou, até, os dois meios mais eficazes para enfrentarmos o sofrimento: as substâncias tóxicas e a loucura...

Infelizmente, concluiu Freud, as drogas e a loucura levariam a civilização ao declínio total; por isso, tentei seguir o método aparentemente inofensivo de Chinmoy: sentei-me, cerrei os olhos, relaxei, abstraí-me do mundo...

Senti-me zen pela primeira vez na minha vida, preparadíssimo para conhecer as últimas do mundo, mesmo as realidades mais atrozes; vejamos:

O governo garantiu que, em 2013, iria cortar 300 milhões de euros nas parcerias público-privadas. Acontece que, na verdade, cortou metade deste valor... Pelo menos, nos cortes dos ociosos funcionários públicos e desempregados não houve falhas ou equívocos...

Aguiar-Branco, Ministro da Defesa, encerrou os estaleiros navais de Viana do Castelo com a justificação que a Comunidade Europeia exigia à empresa a devolução de ajudas europeias no valor de 180 milhões de euros. Acontece que Joaquim Almunia, Comissário Europeu do sector, garantiu recentemente que a Comissão nunca exigiu essa verba...

João Portugal, o deputado que nada faz e nada diz na Assembleia da República, decidiu dar um ar da sua graça abstendo-se na questão do referendo à co-adopção... Joãozinho alinhou na golpada da direita mais tonta, radical e reaccionária!

E pronto: graças a João Ataíde e à meditação de Sri Chinmoy, as realidades mais dramáticas transformam-se em graças divinas! Milhares de turistas virão à Figueira na ânsia de encontrar esse reino espiritual sem deputado, partido ou governo mentiroso e incompetente!

Viva João Ataíde, viva Sri Chinmoy, viva a Figueira happy!

domingo, 5 de janeiro de 2014

A Alvéola


Aparentemente, o país cresce... Sobem as exportações e o emprego, descem as falências e insolvências; o Prof. Marcelo – um predestinado - garante que o chumbo do Tribunal Constitucional ao corte das pensões não vai enervar os mercados e que o Ronaldo vai vencer todas as Bolas de Ouro da humanidade...
Na Figueira da Foz, a administração do novo “hotel titanic” da Ponte Galante garante que o empreendimento criará 100 postos de trabalho?! Ataíde, entusiasmado, fala em “pólo de crescimento” turístico, em “navios de cruzeiro” na barra da Figueira e na “exploração turística de mercados internacionais”...

Nesta quadra, a cidade foi transformada numa “Cidade Natal”, com luzinhas, casinhas, musiquinha, “fun zone”, karts a pedal, insufláveis e uma exposição de 750 “pais natais” no meeting point - uma das “maiores do mundo!”, garantiu o responsável pela mostra.

A “Associação de Apoio à Crise” realizou uma parada de “pais natais” que juntou 12 camiões, o Tino de Rãs, o Grupo de Dança BWS com Carmencita ou as Next Generation... “Este foi um grande balão de ensaio para, num futuro, vermos a Figueira falada por todo o mundo com esta grande parada”, garantiu Quim Madeira, da organização...
Infelizmente, estas maravilhas surpreendem-me no momento em que tomo conhecimento de uma tragédia: o passarito que vivia no E. Leclerc desapareceu!

Recordam-se dele, do texto que escrevi há três anos atrás? Rezava assim: “Sabiam que no E.Leclerc vive um pardalito? É um pardal, igual a tantos outros, mas figueirense, desmesuradamente esperto, de tal maneira que se refugiou logo na zona dos congelados; como sabem, qualquer ave concelhia tem sempre de fugir do calor “inigualável” da praia da claridade. Adiante. O pardal voa no paraíso E.Leclerc sem freio, receio ou preocupação, a catita ave é livre, totalmente livre, não espera um “amanhã que cante”, nada, só deseja debicar sem cessar os produtos guia, aqueles com 50% de desconto em cartão; é claro que quem vai poupando assim é feliz, não almeja mais nada, nem sequer repara na moça da charcutaria, a do turno da noite: formas generosas, paio fresco a toda a hora, soldo miserável por 12 horas de jornada solitária; será que o passarito algum dia vai reparar na moça? E que a moça vai algum dia melhorar a sua existência, quiça, ser por breves momentos um pássaro livre, totalmente livre, sem precisar de um “amanhã que cante”?! Não faço ideia como acabará a história, o mais certo é o pardal debicar o paio nobre da moça e ser enxotado de vez...”.

Acontece que o pardalito – afinal, uma alvéola macho – foi enxotado três vezes do E.Leclerc, e três vezes regressou ao seu paraíso...
Até há meia dúzia de dias, o “chiquito” – os funcionários do hipermercado baptizaram-no assim – debicava sem cessar na frutaria, nos congelados, nos legumes, na charcutaria; resultado: o chiquito transformou-se numa bola de sebo e já nem conseguia voar...

Há um conjunto de lições que podemos retirar da vida deste passarito...
Chiquito, tal como os Homens, abdicou da liberdade em nome de uma existência plena, feliz e obesa...Os Homens, refere Freud, procuram a mesma felicidade mas a condição humana – a dor, o medo, as frustrações, a angústia, a ausência de sentido, a morte – impede-os de a alcançar...

O que é que nos resta?! Cuidar do nosso “jardim”, como referiu Voltaire no fim do brilhante Cândido; ou seja, entusiasmemo-nos por algo. Sejamos felizes nas casinhas da Cidade Natal, a ouvir o Tino de Rãs, o som dos motores do Quim Madeira ou a Carmencita com o grupo de dança BWS; vibremos com os 750 pais natais, os 100 postos de trabalho no “Titanic”, os navios de cruzeiro na barra da figueira ou o Prof. Marcelo a garantir todas as bolas de ouro da humanidade ao Ronaldo...
Transformemos a Figueira num imenso E. Leclerc: com o Chiquito no seu Jardim do Éden, antes do pecado original; alguém percebe, então, porque é que o raio do pássaro se escapuliu?!