domingo, 10 de junho de 2012

A Rinite

A ideia surgiu do nada, literalmente. O nada é o tempo entre velórios,enterros, jazigos, crematórios. Eu sei que, lá fora,o sol rutilante acicatava o chilrear da passarada arribada no enorme plátano que se ergue em frente à capela mortuária, mas naquele negrume absoluto não havia lugar para almas viçosas e robustas; a morte tudo tolda...

A muito custo, afastei-me da dor e observei o gigantesco plátano;
cogitei: mas o tempo não se poderia suspender indefinidamente?! As
árvores repletas de vida, os animais e os humanos, não mereceriam um
destino diferente?!

É claro que só poderia estar a pensar na minha própria morte; não sei
porquê mas não me entusiasma nada acabar assim: num caixão clássico,
fato demodé da Maconde posto – desculpem mas é o único fato preto que
comprei na minha vida -, deitado numa posição desconfortável com
coroas de flores a enfeitar-me e a provocar-me alergia, aliás, rinite
alérgica, garante a minha médica de família.

Mas, se o passar dos segundos, minutos, horas e dias, se suspendesse
indefinidamente, como funcionaria este mundo sem ocaso: a evolução
humana desapareceria de vez?! E a existência humana, ganharia,
finalmente, algum sentido?!

Acontece que, na Figueira da Foz, não seria problemático o fim da
evolução humana, aliás, tudo indica que o nosso concelho já atingiu o
seu zénite!
Culturalmente, os figueirenses seguem na vanguarda, em cada esquina da
cidade floresce um debate, uma palestra, a conferência ou a tertúlia
mais bombástica; resultado: os atropelamentos culturais têm entupindo totalmente as urgências hospitalares...
Na intervenção social e recreativa, a actividade é tão fervilhante que
acabam por existir mais instituições de solidariedade do que
vagabundos, e há muito poucos lugarejos para tantas colectividades.

Mas é na actividade política que a cidade atinge todo o seu esplendor!
Nestes últimos anos, centenas, aliás, milhares de figueirenses têm
aderido aos maiores partidos políticos do concelho! Perguntarão em
uníssono: como é que isto é possível?! Enquanto no mundo inteiro se
assiste ao ocaso da partidocracia, na Figueira, hordas de cidadãos
lutam por uma “fichazinha” partidária!  
Os partidos representam, portanto, o melhor dos mundos possíveis. Os grandes valores universais, a retórica mais tonitruante, as querelas ideológicas mais fascinantes; é por tudo isto, presumo, que o figueirense não resiste a transformar-se em camarada... Na Figueira, não há lugar para o caciquismo, o tachismo, a ameaça a quem vote na lista perdedora, e ninguém faz promessas descaradas nem pratica a maledicência mais rasca sobre os seus adversários. Ai estão os nomes dos grandes líderes partidários locais - João Portugal, Miguel Almeida, António João Paredes – a comprovar isto mesmo.                                                                 
Estou, portanto, perante um enorme dilema: continuo a defender que o
tempo se suspenda indefinidamente, acabando com a evolução humana mas mantendo a maravilha - cultural, social e política – que o figueirense
hoje representa?! Ou então, esqueço todo este disparate pegado, pois não há tempo suspenso que ajude a decifrar o maior mistério de todos os tempos: qual é o verdadeiro sentido da existência humana?!


Nascer para morrer carregadinho de rinite alérgica...