domingo, 27 de dezembro de 2015

O Lacinho

Um nó e duas pontas encarnadas; cada um dos Plátanos, Choupos, Olaias, Palmeiras e Eucaliptos do Jardim Municipal da Figueira da Foz tem direito a um laço natalício; durante a época festiva, temos o Jardim Natal...    

Casinhas de docinhos, travessuras, abraços, insufláveis, selfies, carrocel, Pai Natal, artes, ténis, origami, farturas, castanhas, pipocas, face paiting, simulador de kart, Presépio, animais reais como o burro Batatinha e a cabra Riscada, etc, etc; o jardim transformou-se num paraíso para a criançada e para as suas plantas, flores, arbustos e árvores, em júbilo com os lacinhos e os cogumelos artificiais que decoram os seus troncos e ramos.

Os figueirenses têm acorrido em massa a este Eldorado de felicidade, mas, curiosamente, a mim só me ocorre uma quadra do poema de Miguel Torga, Só eu Sinto Bater-lhe o Coração: Dorme a vida a meu lado, mas eu velo. (Alguém há-de guardar este tesoiro!) E, como dorme, afago-lhe o cabelo, Que mesmo adormecido é fino e loiro.

Há pelo menos duzentos anos que esta tristeza endémica dos portugueses é atribuida à irrealidade do seu carácter, ao choque entre a miséria nativa e o convencimento de que somos um povo superior, ao saudosismo da glória passada, à esperança vã de que regressará o encoberto e o quinto império...

Mais: Unamuno, no seu Portugal Povo de Suicidas, sentencia: Portugal é um povo triste, até mesmo quando sorri. A sua literatura, inclusive a sua literatura cómica e jocosa, é uma literatura triste. Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida. A vida para ele não tem um sentido transcendente. Querem viver, sim, talvez; mas para quê? Mais vale não viver.

Os figueirenses parecem querer alterar o rumo da história procurando a felicidade na casinha das travessuras, no burro Batatinha ou nos workshops de origami; tudo isto é uma irrealidade... Bem melhor que o poema de Torga: Dorme a vida a meu lado, mas eu velo. (Alguém há-de guardar este tesoiro!).


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A Couve

Na mesa, umas couves tronchudas viçosas; uns homens perfilados trajam capas castanhas com porta medalhas e chapéus de abas escuros; em primeiro plano, um homem ostenta um estandarte verde com o dizer: “Confraria das Couves de Castelo Viegas, Coimbra, fundada em 2010”.

Só depois é que leio, no Diário de Coimbra do dia 1 de Novembro, a grande manchete: “Confraria distribui mais de mil couves por IPSS de Coimbra”.
O jornal conta que a confraria existe desde 2010, conta com 62 confrades efectivos - 8 deles de honra – e que 40 associados esperam ardentemente a entronização. E como é que o presidente da confraria, Carlos Ferreira, justifica a existência da associação? Para “manter viva uma tradição” da freguesia... Cavar e plantar a couve-portuguesa, Brassica Oleracea, grupo Costata.

Esta espécie de cavaleiros da boa figura, fazendo o bem armados com couves, recordam-me outro cavaleiro, mas este da triste figura: D. Quixote de la Mancha.   
Recordam-se da obra prima de Cervantes? Da figura de D. Quixote, um cavaleiro andante colocado num tempo em que não existiam cavaleiros andantes; que andava armado com armas utilizadas cem anos antes; um fidalgo pobre que, portanto, nunca poderia ser armado cavaleiro. E as suas sucessivas aventuras, procurando a honra e a fama eterna, são sempre acções fora do espaço e dos dias em que vivia...

As  confrarias, pelo contrário, assentam que nem uma luva no nosso tempo; reparem na confraria do Bucho Raiano, na Confraria do Bucho de Arganil, na Real Confraria do Maranho ou na Confraria das Tripas à Moda do Porto; tudo enchidos cuja Organização Mundial da Saúde aconselha a não consumir... É claro que logo mil vozes se levantarão recordando que também temos a Confraria dos Nabos e Companhia, da Moenga, do Chicharro, dos Sabores da Fava ou a mui nobre Real Confraria Gastronómica das Cebolas... 

Este viver fora do tempo leva-nos, inevitavelmente, até ao novo governo de esquerda; será possível governar à esquerda num mundo dominado pelo liberalismo?
Antes, importa perceber o resultado da ideologia liberal num país como Portugal: privatizaram-se monopólios estatais, como o sector da energia, mas temos a segunda electricidade mais cara da Europa e o gás natural mais caro da União Europeia; flexibilizamos o mercado de trabalho – precarizamos e reduzimos o valor dos ordenados pagos aos trabalhadores – mas a economia não cria empregos suficientes para absorver a mão de obra disponível; na distribuição de rendimentos, temos um dos países da Europa onde o fosso entre os mais ricos e os mais pobres é maior...

Pergunto: manter o status quo, com o seu coro de desempregados, trabalhadores com ordenado mínimo, emigração qualificada, é governar no sentido correcto da História?

António Costa poderá ser o maior bluff da história política portuguesa, uma espécie de D. Quixote ensandecido, convencido que vai mudar o mundo distribuindo benesses a torto e a direito.

Mas, 41 anos depois de Abril, ainda há uma réstia de fé; talvez António Costa seja um cavaleiro da boa figura, armado com uma saudável e deliciosa couve...           


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

No Ears

O “Mr No Ears” é alvo, zarolho, um felino vadio que passeava em liberdade pelas falésias da Praia do Peneco, Albufeira, sem orelhas mas com um olho verde azeitona vigilante. No mês passado, um casal do Vale do Sousa, benemérito dos animais, encontrou “Mr No Ears” em aparente sofrimento, com chagas e odor fétido; imediatamente tratou e adoptou o Sr. Sem Orelhas; baptizou-o de Jack.

Acontece que “Mr No Ears” não pode ser apagado por Jack; o gatito branco tem uma página no facebook com 22 208 seguidores de 45 países; a Associação dos Amigos dos Gatos do Algarve utilizava a imagem do felino em campanhas de angariação de fundos; e uma página web internacional, o KittyArmy, garante que o “icónico” gato é o “rei leão” de Albufeira. Resultado: a Associação dos Amigos dos Gatos do Algarve seguiu para tribunal, acusou o casal benemérito do Vale do Sousa do crime de rapto de “Mr No Ears”...

No caso, não espanta o rapto em si, um gato concentra toda a doçura e gentileza do mundo, todo o homem almeja raptar um felino. Antes, a demonstração da impossibilidade prática de aplicar o imperativo categórico de kant na vida real. Recordam-se? “O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.

O casal do Vale do Sousa encontra um gato em chaga, tal qual Cristo em sofrimento, gasta uma dinheirama numa TAC e em veterinários para o tratar - descobrem-lhe um cancro no que resta das “Ears” -, e depois surge uma associação de amigos dos gatos vadios que exige a restituição do felino!

O que nos serve agir “segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”?

Recebes refugiados da guerra da Síria em tua casa, mas pertences a uma Europa que factura milhões vendendo armas para o conflito; estudas afincadamente numa licenciatura que custa milhares ao Estado, mas a economia envia-te para o estrangeiro; trabalhas com esmero, tentando ser mais produtivo, mas o teu ordenado nunca sobe....
A felicidade no mundo apresenta-se como o “Mr No Ears”: preso no canil municipal do Porto, a aguardar o julgamento do caso...