segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

O Porno

Os títulos denunciam o conteúdo: Como Usar O Maldito Bule, Como Sustituir A Carta de Condução Roubada, Como Seguir As Instruções, Como Evitar Doenças Contagiosas, Como Viajar Com Um Salmão...

Estas Instruções para Uso, do genial Umberto Eco, aparecem no Segundo Diário Mínimo, uma colectânea das paródias literárias que Eco foi escrevendo  depois do aclamado Diário Mínimo de 1963.

Para perceberem o método de Eco, vou exemplificar com a crónica, Como Reconhecer Um Filme Porno.

Nesta, Eco encontra um critério infalível para percebermos se estamos perante um filme pornográfico: o “cálculo dos tempos mortos”. Umberto explica-se: “Os filmes pornográficos estão repletos de pessoas que entram no carro e conduzem quilómetros e quilómetros, de casais que perdem um tempo incrível para se registarem no hotel, de senhores que passam minutos e minutos nos elevadores antes de irem para o quarto, de raparigas que sorvem licores variados e perdem tempo com camisolas e rendas, antes de confessarem uma para a outra que preferem Safo a Dom Juan. Vulgarmente falando e sem muitas cerimónias, nos filmes pornográficos, antes de se ver uma saudável foda é preciso levar com um anúncio do vereador dos transportes”.

Eco explica em seguida que estes tempos mortos são essenciais para o espectador, pois, “para que a transgressão tenha sucesso, é necessário que ela se recorte num fundo de normalidade. Representar a normalidade é uma das coisas mais difíceis para qualquer artista – ao passo que representar o desvio, o delito, o estupro, a tortura, é facílimo”.

Já repararam que, nos telejornais, a normalidade se confunde com o desvio? Depois da morte de um jovem de 29 anos por falta de cirurgião ao fim de semana, os noticiários desencantaram logo incontáveis casos semelhantes. Os tempos mortos quase que desapareceram dos telejornais, mas não deixam de ser pornografia pura...

E a realidade pornográfica figueirense: num concelho onde os figueirenses emigrados em New Bedford recolheram, porta-a-porta, donativos destinados a equipar o Hospital Distrital da Figueira da Foz, a autarquia gasta 100 mil euros nas festas de fim de ano....

E os bancos que, de repente, vão todos falir... Normalidade ou desvio? Obviamente, estupro e delito...

Umberto Eco coloca o dedo na ferida, pois deveríamos ter as Instruções para Uso sempre à mão: Como Ver Tv e Não Enlouquecer, Como Não Beber na Passagem de Ano da Figueira, Como ter Pena dos Banqueiros...

Basta calcularmos os tempos mortos para percebermos que o mundo se confunde com um filme pornográfico...


 



Nenhum comentário:

Postar um comentário